João Víctor, ou "Victinho" como sua mãe o chamava, não era um garoto normal. Asmático, passou a infância toda evitando esportes, ficando de lado nas horas de brincadeiras com os colegas. Míope, era chamado de "quatro-olhos" pelos meninos mais velhos da vizinhança. Com suas botas ortopédicas, corria o seu mundo particular dentro de seu quarto. Cresceu sem muitos amigos. Os poucos que possuía eram virtuais. Passava horas e horas diante da tela do computador, em chats e jogando RPG online. Esse era seu mundo. "Sou o Grande Güngnir, o Imperador de Asgard!".
Ao terminar o segundo grau, veio a época dos vestibulares. Horas e mais horas atrás de montanhas de livros de física, matemática e química, sem saber o que realmente queria cursar. A idéia de fazer cursinho pré-vestibular não o agradava nem um pouco. "Muita gente sem vontade de estudar..." Foi nessa época que, vasculhando os cantos obscuros da biblioteca pública, descobriu os grandes escritores da literatura: Fernando Pessoa, Saramago, Byron, Shakespeare, Machado de Assis, Augusto dos Anjos, Garcia Marquez... Despertado para o mundo literário, lançou-se ao abismo das palavras. "Vou ser escritor!". Seu mundinho nerd já não era suficiente para sua ânsia de conhecimento, e a cada novo livro lido, a vontade de ler crescia mais e mais. A vontade de conhecer à fundo literatura foi tanta que decidiu: "Vou fazer letras!"
Aprovado pela universidade federal, o mais novo calouro da faculdade de letras adentrou o universo acadêmico. Tudo era novidade... Pessoas lendo, debatendo temas polêmicos, manifestando-se à favor de seus direitos, e é claro as festas! Muita bebida, gente dando risada e se divertindo. Já não achava a vida social tão ridícula. Pelo contrário, passou a se interessar pelo contato direto com as pessoas, e não por jogos online e bate-papos de internet. Já havia feito alguns contatos em sua classe. "Amigos reais, afinal!".
Mesmo estando disposto a experimentar coisas novas, ainda sentia-se deslocado e com baixa auto estima. Precisava mudar o visual. Ficar mais descolado... Parecer mais interessante! "Quem sabe ser popular... Quem sabe até arrumar umas garotas!"
Mandou fazer lentes de contatos, cortou o cabelo, compro um tênis all star e umas camisetas polo listradas. Mas não adiantava mudar apenas seu visual, precisava mudar suas atitudes. "Amanhã vou puxar papo com algumas pessoas."
Chegou no centro acadêmico da faculdade e adentrou o recinto. Notou que duas garotas da sua classe conversavam empolgadamente com um veterano, Chegou mais perto para escutar sobre o que conversavam.
- ... esse lance mais introspectivo da Clarice Lispector, tipo, é doido! Saca? – falava Raquel, uma das meninas... a mais interessante.
Foi quando João tentou entrar no assunto:
- Desculpa interromper, mas... eu não pude evitar de escutar o papo de vocês. E eu acho que a Clarice, além de apresentar esse caráter existencial fascinante em suas obras, surpreende também pelo estilo solto, elíptico e fragmentado. Ela se aproxima muito, nesse sentido, à Virginia Woolf e James Joyce... "Saca"?
Os outros três, parados e um pouco atônitos, permaneceram em silêncio durante alguns milésimos de segundo. Assimilavam as informações. O veterano falou:
- Pode crer, bixo! A mulher era foda, véio!
Raquel mostrando-se interessada, perguntou:- Eu acho que eu faço algumas cadeiras contigo.. Qual mesmo teu nome?
- João Vic... Digo, João. Apenas João! – gaguejou. "Acho que isso vai dar certo!".
Ah, Raquel... Raquel era uma menina interessante. Cabelos castanhos, curtos atrás e com uma franja mais comprida e lisa pendendo sobre seu rosto. Usava óculos retangulares de aro preto. Possuía feições delicadas. Parecia ser inteligente, e o melhor: parecia interessar-se por João Victor.
Em poucos dias, estava inserido naquele grupinho. Estava feliz, pois discutiam seus autores preferidos, já tinha alguns amigos e estava cada vez mais próximo de Raquel. Ainda era um pouco mais esquisito do que os outros, e por vezes, sentia-se um pouco deslocado. Mas fazia um esforço enorme para manter-se na tribo, copiando suas gírias e suas roupas.
Com o passar do tempo, a convivência com Raquel gerou bons frutos: foi convidado por ela para ir em uma festa. "Vai ser legal, João! Vai ter até uma banda cover de Los Hermanos! Bala!!!"
Na sexta à noite, se arrumou e pegou o ônibus em direção à tal festa. Não sabia exatamente o que esperar, pois nunca tinha ido nesse tipo de evento social. "Eu tô preparado? E se ela quiser me beijar? E se eu ficar nervoso e estragar tudo???". O pavor tomou conta de seu corpo. Levantou do assento e gritou:
- Motorista! Pára esse ônibus!!!
Deu o sinal e o condutor parou o veículo. João desceu e, apavorado se sem conseguir respirar devido ao repentino ataque de asma, constatou que não estava com sua bombinha. Com o peito apertado e arfando, tentou se concentrar e respirar lentamente. Aos poucos sua respiração ofegante foi voltando ao normal. Havia controlado sua crise, mas estava longe demais de sua casa, e não sabia como voltar. Só havia uma coisa a ser feita: esperar o próximo ônibus e rumar em definitivo ao encontro de Raquel.
Continua...
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